Registros detalhados, análises quantitativas dos comportamentos e experimentos ajudam os cientistas a começarem a entender as reações de primatas não humanos diante da morte.
Orcas, orangotangos e até peixes-bois que carregam os corpos de suas crias mortas. Elefantes que, enquanto fazem isso, emitem sons que, aos nossos ouvidos, soam como um lamento – e depois cobrem os seus mortos com folhagem. Mãe, chimpanzé que se recusa a soltar o filhote que morreu há meses, mesmo diante da degradação ou mumificação do corpo. Casos assim inevitavelmente nos conduzem à pergunta: animais não humanos vivenciam algo como luto? E se você for um cientista curioso, vai querer ir além de saber: o que as reações apresentadas diante de um companheiro de espécie morto têm de base evolutiva?
Ninguém tem respostas conclusivas para essas questões, mas os pesquisadores têm buscado formas mais sistemáticas para entender a percepção da morte, especialmente em mamíferos, grupo em que o apego tem presença importante.
Nos primatas, alguns experimentos começam a ser desenhados, mas a observação e o relato detalhado do fenômeno quando acontece, mesmo por pesquisadores que a princípio estudavam outros aspectos, continuam a ser úteis. Por isso, quando Irene Delval – que pesquisava o desenvolvimento da personalidade em macacos-prego-do-peito-amarelo – notou uma mãe carregando o filhote morto, fez questão de registrar e compartilhar o evento em um artigo científico.
Apesar da curta duração – algumas horas – e de não ter sido possível acompanhar como se deu o desfecho, este é o primeiro relato de um provável caso em que outros macacos mataram o filhote (infanticídio) em um grupo selvagem de Sapajus xanthosternos, seguido de respostas comportamentais relacionadas à morte, com o carregamento e cuidado do cadáver pela mãe.
A mãe carregar a sua cria morta é a resposta mais comum observada nos primatas, mas também foram vistas respostas dos animais à perda de outros membros juvenis e adultos do grupo com interações físicas como a catação (mais conhecida pelo termo em inglês “grooming”, que é um hábito presente em diversos mamíferos, especialmente os primatas, de afagar a pele ou os pelos e catar ectoparasitas), sacudir/abanar/agitar ou bater no cadáver, bem como vigílias, com a permanência perto do corpo por longos períodos e retorno ao local para observá-lo, enumera ao Jornal da USP André Gonçalves, primatologista da Universidade de Kyoto, no Japão.
Protoluto
É possível falar em luto? No caso descrito por Irene Delval, os revisores do trabalho recomendaram não utilizar o termo. Mesmo assim, é um comportamento que chama a atenção. “Talvez um protoluto, porque a mãe já tem sinais do corpo que ele não vai acordar. Mas ela não o larga, porque está em apego. Há uma dissonância cognitiva por conta do seu vínculo de apego – e a mãe precisa deste vínculo para cuidar apropriadamente de um indivíduo que depende totalmente dela por muito tempo”, diz ao Jornal da USP Irene Delval.
Ela relata que quando o filhote apelidado de Fire caiu no chão, e ainda estava vivo, houve muitas vocalizações de alerta, mas bastante semelhantes às feitas diante de uma ameaça como uma cobra, ou quando eles estão predando algum mamífero pequeno e a presa cai no chão. “Então não podemos falar necessariamente em sofrimento, seria uma interpretação”, explica a pesquisadora do Instituto de Psicologia (IP) da USP.
Diversos outros casos registrados na natureza e em cativeiro, porém, tornam incontroverso afirmar que os primatas não humanos podem sentir luto. Definido como um evento de desregulação emocional pela perda de um indivíduo com quem se tem vínculo, nos humanos o luto se manifesta via perturbações no sono, estresse, diminuição da sociabilidade, da atividade e do apetite. E esses sintomas também foram observados em primatas diante da morte, como relata André Gonçalves. “Da mesma forma que atribuímos a capacidade de luto a crianças pequenas que ainda não têm um conceito claro da morte, também não é necessário invocar esse conceito para afirmar que outros animais podem experienciar o luto”, diz ao Jornal da USP.
Irene Delval comenta que há um grande cuidado para não se incorrer em uma antropomorfização – atribuindo a animais não humanos comportamentos que são típicos de nós mesmos. “Mas a questão é que este comportamento [levar o filhote morto] não parece ser adaptativo. O mais pragmático seria algo como ‘tá bom, o filhote morreu, a vida continua, vamos ter outro filhote, vamos copular amanhã e esquecer disso’, e não é o que acontece”.
Carregar o filhote morto é desadaptativo, vai contra a própria sobrevivência da mãe, gerando dificuldades de alimentação e de seguir o grupo, por exemplo. “Você pode pensar: ‘ah, a mãe não sabe se ele poderia acordar’. Mas tem uma hora que ela já vê que ele não vai reagir e mesmo assim não o deixa ir embora. Talvez porque esse vínculo de apego já foi estabelecido e ficou um pouco mais forte, ela se recusa. Isso para mim é um protoluto. Para os mamíferos, que têm um cuidado materno prolongado, isso é muito claro. Há casos de até 90 dias de mãe carregando o corpo”, diz Irene Delval.
Ela chama a atenção para o risco oposto ao da antropomorfização: a “antroponegação”, que é esquecer que nós humanos também somos animais, e que pode haver comportamentos que antes se pensava exclusivamente humanos, mas existem em outros primatas.
“Não queremos dizer que os outros primatas são como nós, mas lembrar que nós também somos primatas”, diz. “Não somos os únicos que fazemos alguma coisa quando um indivíduo da nossa própria espécie morre. Nos mamíferos, eu me inclino a dizer que o luto manifestado pelo carregamento do filhote morto tem a ver com o apego, mas para isso precisamos acumular registros e testar melhor a hipótese.”
Fonte – USP
Foto – Alecia J. Carter/Royal Society
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